Entendendo o Autismo (I)

Definição e Características

Emanuel Martelli

3/3/20254 min read

O autismo é um distúrbio cuja definição é relativamente recente. Se revisarmos a história da psicopatologia, encontraremos alusões a pessoas cujas características se encaixam na definição de autismo em documentos dos séculos 18 e 19 (Frith, 1989, 1999; Wing, 1997).

Entretanto, somente na década de 40 do século XX, Leo Kanner publicou o ensaio “Autistic disturbances of affective contact” (1943), no qual descreveu de forma lúcida e sistemática as características de 11 crianças atendidas em sua clínica em Baltimore. Kanner identificou, nesse documento, quatro características definidoras do transtorno: incapacidade de se relacionar adequadamente com outras pessoas; sérias dificuldades no desenvolvimento da comunicação e da linguagem, tanto em nível expressivo quanto de compreensão; presença de uma insistência persistente na invariância, ou seja, uma necessidade importante de que as coisas permaneçam estáveis: resistência a mudanças ambientais, rotinas, inflexibilidade etc. Ele também observou o início precoce do transtorno, que se torna evidente nos primeiros três anos de vida. Apenas um ano após a publicação de Kanner, Hans Asperger (1944) descreveu a “psicopatia autista”, com base em quatro casos clínicos, como uma condição presente apenas em homens, que apresentavam as seguintes características desajeitamento social, suas relações interpessoais eram ruins e eles não pareciam demonstrar sentimentos em relação aos outros; comportamento estereotipado e falta de jeito motor; uso idiossincrático da linguagem, embora, ao contrário de Kanner, Asperger não tenha observado um atraso na aquisição da linguagem, pelo contrário, foram observadas boas habilidades linguísticas; boas habilidades cognitivas; interesses específicos e particulares, alguns até mesmo demonstraram habilidades especiais ou surpreendentes ligadas às suas áreas de interesse.

Ambos os autores descreveram um distúrbio que apresentava uma característica central comum: dificuldades nas relações sociais, habilidades de comunicação, um padrão de inflexibilidade mental e comportamental, interesses restritos e um início precoce. No entanto, a partir dessas primeiras descrições de Kanner e Asperger, várias décadas se passam, e é somente na década de 70 que vários pesquisadores resgatam os escritos desses autores, começando a desenvolver pesquisas com o objetivo de explicar o autismo a partir de uma perspectiva cognitiva e neurobiológica. Uma importante mudança na concepção do autismo ocorre em 1979, com a publicação de um estudo epidemiológico realizado por Lorna Wing e Judith Gould (1979). Essas pesquisadoras observaram que as pessoas com autismo apresentavam déficits nas três áreas estabelecidas por Kanner e Asperger: - Reciprocidade social - Comunicação verbal e não verbal - Capacidade simbólica e imaginativa Além disso, apontaram que a afetação ocorria em diferentes níveis, o que permitiu substituir a ideia de uma série de sintomas necessários e suficientes pela noção de um “continuum” ou “espectro” de dimensões alteradas em maior ou menor grau (Rivière, 1991).

A partir dessa visão dimensional do autismo, surge a denominação de “Transtorno do Espectro Autista” (doravante TEA). Os referenciais de diagnóstico e classificação são o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria (APA, 1987; 2002), e a Classificação Internacional de Doenças (CID), desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde (1992), refletiram os avanços no conhecimento do TEA, passando de sua definição como transtorno afetivo de contato em suas primeiras edições para um transtorno dimensional nas edições atualmente em desenvolvimento, 2002- e CID10-1992-), o autismo aparece definido como Transtorno Autista e está incluído na categoria de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, juntamente com o Transtorno de Asperger, o Transtorno de Rett, o Transtorno Desintegrativo da Infância e o Transtorno Invasivo do Desenvolvimento não especificado. Uma nova edição do DSM (DSM-V) e da CID (CID-11) será publicada em breve. Nessa versão, a comunidade científica internacional parece ter chegado ao consenso de substituir a entidade de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento pela de Transtorno do Espectro do Autismo, eliminando as subcategorias diagnósticas anteriormente mencionadas, oferecendo uma visão dimensional, que será marcada por déficits na comunicação e interação social e por padrões repetitivos e restritos de comportamento, atividades e interesses, cuja sintomatologia deve estar presente desde a primeira infância. Esses critérios, evidenciados e acordados internacionalmente, estão refletidos nos dados atuais de prevalência. Assim, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA publicou um relatório em março de 2012, no qual afirmava que houve um aumento vertiginoso de 60% no número de casos detectados nos últimos 20 anos, sendo que 1 em cada 88 nascimentos agora tem um TEA (CDC, 2012), o que indica que o TEA não é mais um transtorno raro, mas se tornou, de acordo com alguns relatórios, uma “epidemia”. Essas estatísticas também se refletem em ambientes mais próximos. Por exemplo, em Castilla y León, o número de pessoas que recebem atendimento especializado para TEA aumentou em mais de 20% nos últimos anos.

No entanto, pesquisas sugerem que o aumento da prevalência se deve principalmente à melhoria do conhecimento e ao desenvolvimento de instrumentos que permitem a detecção e o diagnóstico precoces (Arnáiz e Zamora, 2012). Apesar dos grandes avanços no conhecimento sobre o TEA, da grande diversidade de habilidades, bem como da grande variabilidade nas dificuldades e necessidades vivenciadas por esses indivíduos, nós, profissionais da educação, enfrentamos o desafio de dar coerência aos achados, partindo do princípio de que estamos lidando com um transtorno extremamente complexo (Murillo, 2012). Nesse momento, as evidências geradas sobre a ampla heterogeneidade do transtorno devem pressupor um continuum de propostas de intervenção educacional, flexíveis, inclusivas e ajustadas às características e necessidades específicas dos alunos, com o objetivo de oferecer uma educação de qualidade para todos e possibilitar o pleno desenvolvimento de sua personalidade e capacidades.

O autismo pode ser definido como um transtorno do neurodesenvolvimento, geralmente detectado antes dos 3 anos de idade, que afeta todo o ciclo de vida, apresentando alterações nas relações sociais, na comunicação e na linguagem e inflexibilidade mental e comportamental, variando qualitativamente de uma pessoa para outra (Barthélemy et al., 2008).